O que Trump realmente quer ao mirar o Brasil com tarifas

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Foto: Will Oliver/Pool/CNP/picture alliance

Além do alinhamento com bolsonarismo, tarifaço engloba estratégia dos EUA para retomar influência na América Latina por meio de “punições”. No entanto, especialistas advertem que Trump pode ser forçado a recuar.

As novas tarifas anunciadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a produtos brasileiros envolvem mais do razões econômicas. Para além do debate ideológico, usado como justificativa para a ampliação das tarifas comerciais, a atuação de Trump revela a transformação do comércio internacional em ferramenta de punição ou recompensa para governos alinhados à doutrina norte-americana, segundo especialistas ouvidos pela DW.

“O que a gente observa, principalmente desde o primeiro mandato do Trump, é um uso mais temático dessa ferramenta, tanto da pressão comercial, quanto da restrição às relações de investimento dos Estados Unidos”, diz Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV.

O anúncio das tarifas de Trump ocorreu em carta pública ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No texto, o líder dos EUA criticou as ações judiciais contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e o processo eleitoral no Brasil.

Brites compara as altas tarifas impostas aos produtos brasileiros a sanções econômicas, já conhecidas por outros países da América Latina, como Cuba e Venezuela.

“Claro que, formalmente, não se trata de uma sanção, mas a gente poderia colocar essas tarifas no mesmo patamar de efeitos das sanções, que tentam gerar pressão política. Então, elas são ferramentas, de fato, políticas, mais do que ferramentas econômicas. E essa transformação vem ocorrendo paulatinamente à medida que os Estados Unidos vão tendo mais espaços de resistência à sua hegemonia na política internacional”, afirma.

A era da diplomacia comercial acabou?

Se o aumento das tarifas passa a ser utilizado como arma geopolítica, há dúvidas se o mundo continuará a valorizar a diplomacia comercial – um conjunto de ações coordenadas por um Estado, por meio de seus órgãos diplomáticos e comerciais, para promover seus interesses econômicos no exterior.

Essas ações envolviam negociações de acordos bilaterais e multilaterais, abertura de mercados, proteção de empresas nacionais, atração de investimentos estrangeiros e defesa de exportadores diante de barreiras tarifárias e regulatórias, além de órgão reguladores, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo.

De acordo com Carolina Silva Pedroso, professora de relações internacionais da Unifesp, esses instrumentos surgiram no passado por iniciativa dos Estados Unidos, em um contexto de crescente bipolaridade na União Soviética, como forma de fazer prevalecer a sua visão mais liberal sobre a economia mundial, com a expectativa de quanto mais livre o comércio, os países estariam menos propensos a sucumbir ao bloco socialista.

“O regime de comércio internacional construído no pós-2ª Guerra Mundial e que teve o seu ápice na criação da OMC, cujo objetivo era derrubar as barreiras ao livre-comércio, está fortemente prejudicado”, diz.

Para a especialista, as ações dos Estados Unidos, que deixaram de cumprir acordos, principalmente sob Trump, ampliaram conflitos e reduziram o poder das instituições multilaterais. “Todo esse contexto só dificulta a resolução dos conflitos pela via da diplomacia comercial, forçando os países a negociarem bilateralmente, ou arcarem com os custos impostos de maneira unilateral, enfraquecendo os mecanismos multilaterais de resolução de controvérsias”, diz.

Redes sociais, economia e influência

Trump justificou a sobretaxa de 50% citando o julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) – o ex-presidente é acusado de tentar dar um golpe para reverter a derrota eleitoral de 2022 – e o que chamou de “ataques insidiosos do Brasil às eleições livres e aos direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos”. A medida deve valer a partir de 1º de agosto.

Trump também utilizou as redes sociais, palco onde a extrema-direita é forte nos dois países, para reclamar de um suposto cerceamento da liberdade das big techs. Esse estímulo ao engajamento virtual representa o vínculo do governo Trump com as redes sociais, como um dos pilares de sustentação do governo, e o debate que o Brasil vem tentando sobre a atuação dessas empresas.

“O movimento brasileiro de começar a discutir esses limites atinge diretamente o núcleo do governo Trump. E, tendo conhecimento do ativismo brasileiro em tais plataformas, sem dúvidas a articulação da extrema direita nas redes era um efeito colateral desejado, sobretudo em um contexto maior de desempenho sofrível do governo brasileiro e das esquerdas, no geral, nesse mesmo ambiente”, diz Carolina Silva Pedroso.

Além disso, para além do alinhamento ideológico com o bolsonarismo e do movimento das big techs, o anúncio tarifário também ecoa uma disputa dos Estados Unidos com a China pela hegemonia da influência na América Latina, região onde o Brasil exerce uma presença importante, e da criação de alternativas ao dólar, ventilada por países do Brics, incluindo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

“A zona de influência ‘natural’ dos Estados Unidos tem se tornado cada vez mais porosa a potências externas à região, o que, na lógica geopolítica, também indica esse declínio da hegemonia estadunidense”, afirma Pedroso. “Nesse sentido, o respaldo ao bolsonarismo se dá não só pela proximidade ideológica entre os líderes, mas sobretudo pela posição brasileira quando Bolsonaro esteve no poder de maior alinhamento e até submissão aos Estados Unidos”, completa.

O governo Trump, porém, deverá encontrar dificuldades para retomar o espaço que a China ocupa atualmente na região. “É muito difícil pensar que, mesmo com toda essa pressão que os Estados Unidos possam exercer, você consiga substituir de fato a China. Então, por isso que eu sou um pouco cético da capacidade dos Estados Unidos de retomarem plenamente essa liderança que um dia já tiveram aqui na região”, afirma Pedro Brites, da FGV.

Especialistas não creem, contudo, que possa haver uma união diplomática para amenizar a pressão sobre os países da região. “Acho que cada país tem adotado um caminho muito individual. Não consigo ver hoje um cenário de união da América Latina em prol disso. O que a gente observa muito é que os países têm tido inflexões nas suas políticas externas muito significativas a depender de quem está no governo”, diz Brites.

Impactos limitados?

Mesmo com a perda de espaço para a China na balança comercial brasileira, os Estados Unidos se mantêm como um importante parceiro comercial, responsável por cerca de 12% das exportações do Brasil, principalmente no setor de aviação, um dos poucos produtos de alto valor agregado exportados, segundo Odilon Guedes, presidente do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon).

“É importante lembrar que o presidente Trump costuma adotar medidas e, muitas vezes, volta atrás rapidamente. Mas, se essas tarifas realmente forem mantidas, o setor de aviação será um dos mais afetados”, diz.

Para o economista André Perfeito, a alta de taxas poderia custar até 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Mas, a resposta do governo brasileiro em aplicar tarifas recíprocas aos produtos norte-americanos poderia escalar a crise, levando a implicações inflacionárias nos Estados Unidos e no Brasil.

“Como Trump coloca uma questão de aspectos não verdadeiros, comerciais, e políticos, a única reação do governo brasileiro é bater duro de volta. Mas isso poderia trazer uma pressão inflacionária, com juros mais altos”, diz.

Segundo Perfeito, Trump tem uma estratégia volátil e poderá recuar a qualquer momento. “Trump não preza pelo argumento propriamente lógico. É uma estratégia de negociação, dizendo que o Brasil é mal parceiro, o que é mentira, dado que o Brasil roda déficit comercial desde 2009. Ele está querendo uma vantagem para querer algum ativo, alguma vantagem, mas não é propriamente comercial. É um jogo dinâmico, que não dá para cravar onde a bola vai cair, mas que Trump precisará recuar”, completa.

 

 

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